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A Promessa da Virgem

Por Jaqueline M. Souza

Todo mundo já ouviu falar da Jornada do Herói, uma estrutura narrativa surgida através de estudos de mitologia comparada, que levanta passos frequentes na formação de um herói.  Muitos associam o arquétipo do herói a uma figura masculina, mas veremos a frente que esta é meramente uma construção cultural, já que o arquétipo não tem gênero e sim energias. Então, podemos e devemos ter heroínas que trilhem sua jornada mítica, mas será que o arquétipo do Herói foi o único com uma estrutura narrativa decodificada? Não existiriam arquétipos de energia feminina, independente de serem personagens homens ou mulheres, que também tenham uma estrutura narrativa que possa ser estudada e aplicada na criação de histórias? Sim, existe! E se eu te dissesse que não só esta narrativa mítica de energia feminina existe, como está presente em diversos filmes de sucesso como Frozen,  Billy Elliot, Legalmente Loira, Clube da Luta, etc.

Quando falamos em Estruturas narrativas míticas, a Jornada do Herói é a primeira a vir a cabeça, mas o fato de ela ser amplamente difundida, não a torna única. Hoje, conheceremos aqui a Promessa da Virgem.  Você pode nunca ter ouvido falar dela, mas com certeza vai reconhecê-la e entender que ela é tão rica e potencialmente comunicável com as pessoas quanto a Jornada do Herói. 


 

O que é a Promessa da Virgem

A Promessa da Virgem é uma estrutura narrativa que utiliza o arquétipo da Virgem. Foi proposta pela primeira vez pela escritora Kim Hudson em seu livro “A Promessa da Virgem: Escrevendo Histórias do despertar criativo, espiritual e sexual feminino”, um livro para roteiristas que querem ampliar suas estruturas para variáveis femininas.  Hudson, após 5 anos de estudos encontrou padrões e arquétipos em Contos de Fadas e relacionando-os com arquétipos Jungianos,  percebeu que eram aplicáveis a escrita cinematográfica.

 

Aqui, a Virgem não é o interesse romântico de um herói, mas sim a protagonista de sua  própria história. Baseada nos arquétipos jungianos e com reflexões muito interessantes acerca da reprodução de mitos e dos contos de fada na sociedade ocidental, Hudson levanta as características do arquétipo, suas representações e sua trajetória. Inclusive, existe uma diferença básica e primordial entre os dois arquétipos e suas jornadas: o herói passa por uma jornada exterior e a jornada da Virgem  é interna. Enquanto o herói precisa se lançar em um mundo novo e desconhecido para se provar, realizando literalmente uma jornada/viagem, a Virgem passa por sua jornada sem sair de sua comunidade, descobrindo uma faceta de sua personalidade que ela escondia por pressão social. Por isso, o arquétipo da Virgem não faz literalmente uma Jornada, ele confronta uma promessa, uma expectativa social imposta sobre ela a partir de seu nascimento. 

É fácil pensar na Promessa da Virgem em histórias adaptadas dos contos de fadas, mas a estrutura é comumente usada em versões atuais e realistas, que tenham como premissa o auto-conhecimento e uma evolução psicológica e emocional da protagonista. 

Quem é a Virgem

A Premissa da Virgem fala da expectativa social de que ela ocupe um determinado papel. Kim diferencia o feminino da mulher. Como os arquétipos não tem sexo, alguns deles necessariamente não necessitam nem de forma humana, tanto o Herói quanto a Virgem podem ser mulheres ou homens. Entretanto para Kim, os arquétipos estão cercados de energia e por isso a Virgem tem uma energia feminina, algo como a Anima no trabalho de Jung, que pode se manifestar em homens ou mulheres. Ela sugere o título de Príncipe como energia masculina da Virgem, já que se adequa melhor a representação de alguém nascido sob expectativas que limitam sua visão sob si mesmo.

Enquanto o arquétipo do Herói vem do campo dos mitos e das lendas, o arquétipo da Virgem vem do reino dos Contos de Fadas. Enquanto o Herói busca a resposta para “Sobreviveria eu em um mundo maior e fora das asas de minha família?”, a Virgem sempre busca a resposta pessoal para a pergunta: “Quem eu sou e o que quero fazer no mundo, sem ser o que querem que eu faça?”.

O arquétipo do Herói é baseado em auto-sacrifício pela sua comunidade, enquanto o Arquétipo da Virgem é baseado em autoconhecimento e auto-aceitação.

 

O ritmo da estrutura também é diferente da Jornada do Herói. Enquanto na Jornada do Herói, o Incidente Incitante é equivalente ao Chamado à Aventura, ou está pouco antes deste, logo no começo do primeiro ato, na Premissa da Virgem ela está quase no meio do primeiro ato, após as etapas Mundo Dependente e o Preço da Conformidade. Se a dúvida do Herói é logo após o seu chamado, representado na Recusa ao Chamado, na Premissa da Virgem a dúvida está já no Terceiro Ato no Vagar pelo Deserto.

 

A Virgem quase sempre tem uma amiga ou confidente enquanto o Herói tem aliados.  A amiga da Virgem é alguém que vê o seu potencial e a apoio em sua busca. Os aliados do Herói, não são necessariamente seus amigos, mas eles dividem um objetivo em comum.

O mundo contemporâneo vende com mais facilidade A Jornada do Herói por seu caráter militar e belicista, o Herói é sempre um guerreiro que luta contra pressões externas e desconhecidas. É muito mais difícil olhar ao redor e ver o quanto somos oprimidos em nosso próprio lar, como somos pressionados em nossa própria sociedade e é isso que a Promessa da Virgem discute.

 A Promessa da Virgem é um caminho para a jornada de um arquétipo feminino adormecido em nosso inconsciente coletivo.

Você tem que se perguntar: " Eu vou acreditar em todas as coisas ruins que esses tolos falam sobre mim hoje"? 

A Estrutura da Premissa da Virgem

A Virgem vive em um Mundo Dependente, onde ela esconde sua essência para se adequar as imposições dos outros feitas sobre ela. Ela precisa saber ou sentir essa pobreza de expressão pessoal, que é o seu Preço da Conformidade, de modo a ser impulsionada em direção a ser plena. Um dia, ela tem a Oportunidade de Brilhar e Veste o Papel que ela nasceu para ocupar.  Depois da primeira experiência de ser verdadeira com ela mesma, ela cria um Mundo Secreto, onde cresce seu sonho em um ato de rebeldia. A Virgem vai e volta entre o Mundo Secreto e o Mundo Dependente, sempre com medo de ser descoberta, mas feliz com seu crescimento até que ela não consiga mais se apequenar e Não se Enquadra naquela Mundo. Seus dois mundos colidem e ela é Pega Brilhando. O Reino vai ao Caos.  Ela Abandona o que a impedia de Seguir e conscientemente Vaga pelo Deserto refletindo entre a segurança de voltar a satisfazer os outros e o desconhecido de viver sob seus próprios valores. Ela decide Brilhar sua Luz. A repercussão recai sobre ela, enquanto o Reino é obrigado a se Reorganizar. Quando o equilíbrio é alcançado, o Reino Brilha mais Forte do que nunca.

Iremos dissecar cada um dos passos, mas já é bem possível reconhecer a estrutura em filmes como O Diabo veste Prada, O Segredo de Brokeback Mountain, Shakespeare Apaixonado, Drive, Penetras Bons de Bico, Tootsie, Enrolados, etc. Podemos pensar ainda em obras como o uso simultâneo da Promessa da Virgem com a Jornada do Herói em uma só personagem como em Mulan ou Os Incrivéis, ou ambas em personagens distintos como em Frozen ou Shrek.  Ou ainda histórias que podem facilmente ser enquadradas tanto como Jornada do Herói quanto Promessa da Virgem como Breaking Bad. 

A Promessa da Virgem é uma estrutura cheia de possibilidades e muito flexível. Se enquadram nesta estrutura obras completamente distintas como Cisne Negro, Enrolados, Os Incríveis, Azul é a cor mais Quente, Tootsie, Psicopata Americano, Billy Eliot, Clube da Luta, A primeira Noite de um Homem, Histórias Cruzadas, Drive, entre outros.

A Promessa Passo-a-Passo

Mundo Dependente

A história da Virgem começa em um mundo do qual ela é dependente, podendo ser sua família, uma sociedade, etc. O Mundo Dependente pode ser mal ou bem intencionado, mas sempre age com energia opressora sobre a Virgem, impedindo-a de ser quem ela realmente é ou quer ser. Ao contrário da Jornada do Herói, em que a jornada é para um reino desconhecido, na Premissa da Virgem, a jornada acontece em sua própria comunidade, dentro de seu próprio ambiente habitual. .Ela carrega as esperanças de continuidade (da sociedade, da família, dos valores), que são contrários aos sonhos dela. Em histórias em que a opressão é social, a Virgem pode sair do ambiente familiar e doméstico, mas mesmo assim continuará oprimida, já que nestas histórias o “Reino” é mais amplo do que a geografia do lugar- são as próprias convenções sociais. Algumas vezes, a Virgem não é oprimida mas está presa à padrões, comportamentos, pensamentos ou estilos de vida que diminuem seu potencial e a impedem de alcançar sua real identidade. 

 

O Preço da Conformidade

O Preço da Conformidade é a supressão do eu verdadeiro. A Virgem pode não ter  plena consciência de seus talentos,  sonhos e desejos ou ainda conhecê-los mas escondê-los pelas limitações emocionais e físicas do Mundo Dependente.

Oportunidade para Brilhar

A ação que leva a primeira expressão do potencial da Virgem, o Incidente Incitante da estrutura. A prova tangível de que seu sonho pode se transformar em realidade. Nós precisamos entender o Mundo Dependente dela e o custo que a Virgem paga por ele (O Preço da Conformidade) para compreender plenamente a sua Oportunidade de Brilhar.  A Oportunidade para Brilhar acontece ao acaso ou só é aceita pela Virgem, porque não é entendida como uma ameaça, algo que vá mudar completamente o seu mundo.

Vestir para o Papel

O sonho dormente se materializa e ela nunca mais será a mesma. Não tem nada a ver com se vestir realmente (às vezes tem sim ), mas em agir ou experimentar algo que ela nunca tinha feito antes e se descobrir nisso. A Virgem entende finalmente seu papel no mundo. 

Mundo Secreto

Uma vez que a Virgem teve um gosto de viver seu sonho e tornou-o uma realidade tangível, ela cria um lugar secreto onde pode nutri-lo. Pode ser um lugar físico, uma mentalidade, um grupo de amigos, etc. Um espaço onde ela se sinta segura e bem em ser quem ela é, sem as pressões, cobranças e imposições do Mundo Dependente. É um casulo, onde ela transita para crescer lentamente. Ela passa a viver indo e vindo entre esses dois mundos: o dependente e o secreto. 

Não cabe mais no Mundo

Através do tempo que passa em seu Mundo Secreto, a Virgem aumenta o seu poder sob a forma de autoconhecimento, e começa a ver seu sonho como uma realidade possível. Ela está cada vez mais trasnformada e o Mundo Dependente pode começar a enxergar mudanças nela, que já não age como antes. Torna-se claro para a Virgem que ela não pode conciliar estes dois mundos para sempre.

É Pega brilhando

O segredo é revelado. Os dois mundos colidem e as temidas consequências se manifestam. A Virgem, muitas vezes, pode ser punida, humilhada ou exilada.

Deixar para trás o que a Segurava

A Virgem deve sacrificar um pouco de seu passado para mover-se em seu futuro. É um ponto de virada importante no crescimento psicológico da Virgem, algo em seu sistema de crença para de fazer sentido, ela tem um momento de clareza e reconhece que ela tem a capacidade de realizar seu sonho.

Reino em Caos

O Reino entra em caos e instabilidade, quando a rebelião vem do membro tido como o mais fraco, espalha choque e terror.

Vaga pelo Deserto

É um momento de dúvida. O deserto pode ser real ou metafórico, mas a Virgem precisa cortar os laços com o mundo e experimentar o limbo. Ela reflete e vê duas possibilidades: se acomodar e trazer harmonia aos seus entes amados, mas sabendo o preço de se anular ou ser autêntica, mesmo sem a certeza de que sobreviverá.

 

Escolhe Brilhar

A Virgem olha dentro dela mesma e decide que uma vida desconectada dela mesma, não vale a pena ser vivida. Ela prefere brilhar a estar segura ou manter a ordem. 

Reorganização

Uma vez que a Virgem fez seu eu autêntico visível ao mundo, ela perde sua proteção, mas se reconecta com a comunidade, que precisa se reorganizar.

 

O Reino Brilha Mais do que Nunca 

O Reino reconhece que é estagnado e opressivo e que os novos ares têm beneficiado a todos. Um lugar foi feito para o amor incondicional e todas as pessoas agora experimentam o verdadeiro pertencimento. Novos valores são estabelecidos.

 

O Conto de Fada como estrutura?

Para Kim Hudson, uma das diferenças entre a Jornada do Herói e da Promessa da Virgem é que a Promessa da Virgem sempre tem um final otimista. Entretanto, o valor altamente moralizante dos contos de fábulas antigos sempre permitiu finais sombrios e negativos. Hoje, a estrutura é muito utilizada com uma perspectiva mais obscura com finais abertos ou não tão positivos.

 

Toda a estrutura da Promessa é muito flexível e permite uma gama gigantesca de possibilidades narrativas, seja em uma construção mais psicológica, seja levando a trama para um tom aventuresco, seja pulando etapas ou subvertendo-as.

Histórias Cruzadas (The Help), por exemplo, deixa claro que a "mudança no Reino" não é tão libertária como imaginado, mas que mesmo assim, os riscos valem a pena. Já Azul é a Cor mais Quente não tem algumas das etapas referentes ao terceiro ato da estrutura, opta que o amor romântico não é necessário para a realização plena da personagem, e ela termina de certa forma machucada, mas completa. Ben, em A Primeira Noite de um Homem, se descobre, se veste para o papel - e se despe com a Sr Robinson- criando um Mundo Secreto em um quarto de hotel, mas descobre que até essa versão de si mesmo não é obrigatoriamente definitiva. Já Cisne Negro cria um Mundo Secreto cercado de devaneios, trazendo as questões psicológicas para o centro da história.  Os Incríveis apresenta e desenvolve o personagem do Sr. Incrível através da Premissa da Virgem, para só então jogá-lo em uma Jornada do Herói com sua família. 

Vale a pena como exercício, assistir alguns dos filmes citados aqui e observar como a estrutura é utilizada e com que outras ela é articulada.  

Como já dissemos em diversos outros textos aqui da Tertúlia, como roteirista nós não somos obrigados a utilizar paradigma algum na hora de escrever, eles por si só não são uma garantia de qualidade, mas precisamos conhecer e dominar a maior quantidade possível de ferramentas e técnicas narrativas para aí então fazer escolhas artísticas conscientes. Então, agora você já conhece a Promessa da Virgem e tem em mãos mais uma valiosa ferramenta narrativa.

Boa escrita!

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