“É preciso conservar sempre um mínimo de má reputação” - Carlos Reichenbach citando Roberto das Neves em entrevista ao blog Máquina de Escrever
Um dos nossos cineastas e roteiristas mais icônicos, Carlos Reichenbach, completaria 71 anos no dia 14 de junho, data também de seu falecimento há 4 anos. Reichenbach conseguiu algo completamente raro na cinematografia mundial, característica também presente em alguns dos grandes nomes do cinema como Kubrick, Godard ou Buñuel: ter um estilo completamente único, autoral e reconhecível, porém sem ter se tornado escravo de seu próprio estilo. Reichenbach fez filmes tão distintos quanto Amor, Palavra Prostituta e Falsa Loura, mas a sua pulgência cinematográfica está presente igualmente em todos eles.
Entrou na Escola Superior de Cinema São Luiz, primeiro curso de cinema de nível universitário fundado em São Paulo, com o sonho de ser roteirista. Lá foi aluno de Paulo Emílio Salles Gomes e Luiz Sérgio Person, sua maior influência para se aventurar na direção, nascendo assim “Esta Rua Tão Augusta”, seu primeiro curta-metragem.
A partir de então não parou, escreveu e dirigiu mais de 20 filmes (tendo fotografado outros tantos), sobreviveu ao fim de um dos movimentos cinematográficos mais importantes do país, o Cinema da Boca, e criou uma das filmografias mais versáteis e transgressoras do cinema brasileiro. Tudo isso, ancorado por uma mente inquieta e anárquica, que via potencial dramático em tudo:
“Sempre falei para meus alunos que nunca se deve jogar uma idéia fora, por mais esdrúxula que ela possa parecer num primeiro momento. Todas as idéias devem ser arquivadas. Amanhã você pega uma idéia velha, junta com outra nova, pega um personagem aqui, outro ali, e tem um roteiro deslumbrante.” - Biografia O Cinema como Razão de Viver
O híbrido entre o popular e o erudito era uma das marcas autorais de Reinchenbach. Propiciada por sua formação erudita - filho de um pai editor literário - aliada a um olhar atento e curioso sobre a cidade, ferramenta eficaz na criação de obras com forte crítica social.
“Quando escrevi o roteiro de A Ilha dos Prazeres Proibidos, reuni esse repertório de apelo popular e incuti muita coisa erudita, além de dar forte conotação política, já que o tema me interessa muito. Era minha maneira de responder ao pessoal da Boca do Lixo, que tinha o costume de subestimar o público. Diziam que o espectador era burro, que não entendia coisas sofisticadas. Então, eu misturava alta erudição com autênticas baixarias.”- Biografia O Cinema como Razão de Viver
Os personagens criados por Reichenbach são uma questão a parte dentro de sua filmografia. Eles são personagens esféricos, socialmente oprimidos, conflituosos, ingênuos e tão comuns, quanto complexos. Se hoje discutimos, mais do que nunca, a representatividade feminina nas telas, Reichenbach é um ótimo exemplo a ser seguido pelos roteiristas homens. Dos quinze longa-metragens que escreveu, em oito ele optou por contar a história de pelo ponto de vista de uma protagonista feminina, quase sempre mulheres enfrentando um universo violento e machista.
“Procurei registrar minha visão da vida feminina e creio que fui bem-sucedido. Na época do lançamento de Anjos do Arrabalde, houve críticos que disseram que eu tinha alma feminina. Pode ser. O que eu digo é que os personagens femininos, aqui, são muito positivos, enquanto os homens estão sempre dando murros em ponta de faca. Eles estão de passagem, num instante de vida provisório dessas mulheres. O filme trabalha no registro dos sentimentos. Eu só pude fazer esse filme porque admiro realmente aquelas mulheres. Eu tenho uma relação quase afetiva com as personagens” - Biografia O Cinema como Razão de Viver sobre Garotas do ABC
Popular versus erudito, feminino versus masculino, simplicidade versus complexidade, ficional versus auto-biografico, ateismo versus misticismo. Reinchenbach nunca se deixou definir, sempre buscou explorar a pincelada em tons de cinza que está entre a luz e a sombra, revelar a humanidade que habita no paradoxo.
"Eu instintivamente sempre gostei de trabalhar com relações paradoxais. Isso já faz parte da minha dramaturgia. Como disse antes, gosto de trabalhar a escritura do roteiro também como uma aventura, por isso não busco racionalizar o tempo inteiro se estou repetindo expediente narrativos, se as soluções podem resultar esquemáticas, etc. Sinceramente (isso não é um jogo de palavras), eu busco que a história se imponha. Em momento nenhum da escritura eu me preocupo com convenções narrativas, mas gosto se saber que não estou 'falando sozinho'. É bom não esquecer que muitas vezes, quando se investe na aventura permanente (da escritura e da filmagem) a gente tem surpresas."
Você pode ler os roteiros dos filmes Bens Confiscados e Dois Córregos assim como a biografia O Cinema como Razão de Viver gratuitamente no site da Imprensa Oficial. Também recomendamos o Sala de Cinema, série produzida pelo SescTv, onde o mestre compartilha um pouco do seu vasto conhecimento: