Se já passamos por pontos da macroestrutura como estrutura e argumento, agora passamos para o ponto em que a techné do roteirista realmente é colocada a prova, a unidade onde a estrutura e a narrativa irão se desenvolver: as cenas.
A cena é compreendida como uma unidade de ação no mesmo tempo e espaço. Muda-se o local, tem-se uma nova cena. Mantemos o local, mas deslocamos o tempo, também teremos uma nova cena. Existem exceções conceituais em filmes que brincam com o deslocamento temporal e espacial dentro de uma mesma cena (Profissão Repórter de Antonioni faz isso em uma cena e O Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças é todo construído na ruptura desse entendimento), mas o conceito geral é esse.
As cenas são os tijolos que erguem a casa da trama. São pequenos microcosmos que justapostos criam um macrocosmo maior que o todo. Toda cena nos leva em um momento crucial da história de nossas personagens e quando bem escritas, naturalmente nos guia a uma outra cena.
"CENAS SÃO ONDE a ação está – literalmente. Usando descrições e diálogos você traduz todos os elementos da premissa, estrutura, personagem, argumento moral, o mundo da história, símbolo, trama e as experiências reais do público através da tecelagem de cenas na história. É aqui que você faz sua história ganhar vida."
- John Truby, The Anatomy of Story
Em um roteiro toda cena é composta por um cabeçalho e uma descrição (ação). Os diálogos também fazem parte das cenas, mas não nos aprofundaremos nesse tópico no momento.
Você provavelmente já tem em mãos seu argumento e sua escaleta, o que irá facilitar o processo. Agora é hora de transformar todos os conceitos, temas e premissas em ação.
Para começar, ao escrever uma cena sempre se pergunte três questões básicas:
O que acontece nessa cena?
Quem precisa estar nessa cena?
Quando é o melhor momento para a cena começar e terminar?
Nós já falamos sobre essas questões ao passarmos pela escaleta, mas é importante voltar a se fazer essas perguntas no momento da escrita do roteiro. Essas três perguntas básicas funcionam como um guia indicativo para conscientizar a roteirista sobre que rumo seguir e como seus personagens e sua história irão se transformar no decorrer do roteiro cena-a-cena.
Mas, para aprofundarmos as questões que cercam a escrita do roteiro propriamente dito, além das perguntas acima, podemos ampliar a abordagem de forma a pensarmos a construção da cena sobre vários aspectos, sua duração, seu tom, a dinâmica física entre os personagens, etc. Separamos algumas questões que podem enriquecer seu processo de escrita de cenas:
Como essa cena influencia as cenas futuras e as anteriores?
Toda cena tem que ter uma função maior do que servir apenas como um ponto de transição ou revelar informações relevantes para a história. Se a cena é um segmento dentro da macroestrutura, ela existe como consequência de um segmento anterior ao mesmo tempo que providencia recursos para os segmentos seguintes existirem. Em outras palavras, para funcionar organicamente elas devem criar um ponto de relação que desdobra, aprofunda e nos fornece uma maior contextualização das cenas anteriores ao mesmo tempo que permite novos caminhos para a história progredir. Pense em camadas. Uma cena pode trazer elementos que são importantes para a progressão da história, mas ao mesmo tempo ela pode mudar nosso ponto de vista a respeito dos personagens e de suas ações em cenas anteriores.
Ter consciência do momento narrativo em que a cena ocorre pode abrir espaço para brincar com a curiosidade e expectativas do espectador, aprofundando mais a sua história. Revele de forma diluída e quase invisível, informações suficientes para serem desenvolvidas posteriormente, mas não se repita mostrando o que já descobrimos em outras cenas. Quando estiver revisando sua macro estrutura, pense na cena dentro do contexto dramático que ela está inserida, ou seja, o que nos levou a esse ponto e quais conseqüências irão surgir quando essa questão dramática for resolvida?
Como a alteração temporal entre Dia ou Noite nessa cena pode influenciar seu andamento e o roteiro como um todo? Qual espaço melhor ajuda a cena dramaticamente?
Sim, até o cabeçalho de cena pode ser utilizado dramaticamente. As escolhas de quando e onde a cena se passa não são meras escolhas aleatórias de um bom roteirista. Criar cenas que contrastem uma da outra é positivo e ajuda a criar ritmo e textura. Use, por exemplo, as possibilidades de Dia e Noite entre uma cena ou outra para ilustrar a passagem de tempo e aumentar a dinâmica entre uma cena e outra. O local em que a cena se passa também pode ser favorável para a ação, evitando a monotonia e trazendo novos significados para as cenas. Em Spotlight, durante a maior parte do roteiro, os jornalistas pesquisam e leem documentos, para conseguir levantar nomes que possam ser entrevistados. Para que o filme não seja uma seqüência interminável deles pesquisando sentados em seu escritório, o roteiro alterna cenas deles no trabalho, com cenas deles na rua lendo e fazendo anotações em seus tempos livres e até cenas deles fazendo pesquisas em suas casas. Sacha pesquisa na casa de sua avó, uma senhora extremamente religiosa, demonstrando como a reportagem é conflitante com a cultura local. Mike em determinado momento é mostrado em seu apartamento, trabalhando enquanto ferve salsichas para uma cachorro quente que provavelmente será sua janta, até que Ben, seu chefe, aparece com uma pizza. A cena deslocada para a casa do personagem permite mostrar como o trabalho está atingindo sua vida pessoal (e até seu relacionamento) e a preocupação de Ben com o caso. Fosse mais uma cena no escritório, todas essas novas nuances aos personagens poderiam não ser adicionadas. Agora. não exagere na alternância para não inviabilizar financeiramente o roteiro (o produtor agradece!), mas pense em como os locais podem ajudar a contar a história.
Essa é uma cena longa ou curta?
Um problema comum em roteiros não profissionais, é que as cenas não estão plenamente desenvolvidas, parecendo ter sido copiada e colada da escaleta. Cenas essenciais precisam ser bem descritas. Não tem problema descrever apenas que duas crianças brincam, se esse for apenas o plano de fundo da cena, mas se a cena é sobre as crianças brincando, é preciso estabelecer como elas brincam, que dinâmica desenvolvem ao longo da cena, etc, para que a cena tenha função e sentido. Quanto mais importante for a ação, mais importante é que você a descreva como imagina e não apenas de uma forma breve, que deixa ambiguidades e não comunica nenhum sentimento ao leitor.
Que ações executadas pelos personagens podem enriquecer essa cena?
"O roteirista novato usualmente pensa o roteiro como diálogos sem fim em vez de um plano de ação. Aqueles que não entendem completamente o processo de escrita acreditam que escrever diálogos é todo o trabalho. Enquanto os personagens realmente falam como parte de suas tentativas de alcançar suas metas e objetivos, seus diálogos são menos importantes do que as ações que tomam. A magnitude de um roteiro é a descrição de ações e atividade dos personagens, somado, evidentemente, a todo o conjunto de circunstâncias e a premissa da história. O dramaturgo habilidoso pensa no que está acontecendo no palco, e o roteirista eficaz pensa nas ações dos personagens e como eles devem ser vistos pelo público. Isso é o coração da escrita dramática.Ação e atividade não são intercambiáveis nesse contexto. Uma atividade é qualquer coisa que um personagem possa estar fazendo em uma cena, de tricotando a cortando um peixe a digitar para memorizar uma música em voz alta; isso é usualmente chamado de “negócios”. Por outro lado, uma ação é uma atividade com um propósito atrás dela, uma atividade que avança a busca de um personagem em um objetivo.As vezes, a exata mesma ação é uma mera atividade em um conjunto de circunstâncias e uma ação em outra. Por exemplo, um personagem pode estar cortando cebolas em uma cena apenas como uma atividade. Mas em outra ocasião, quando o personagem quer elicitar simpatia de outro personagem, ele pode estar cortando cebolas para se fazer chorar. Essa última, então, é claramente uma ação porque tem um objetivo por trás dela"
- David Howard e Edward Mabley, The Tools of Screenwriting
O item anterior nos leva diretamente a descrição das atividades ou ações que ocorrem em cena. Nada pior do que personagens que falam cena após cena sem fazer absolutamente nada. Dar uma ação física aos personagens em cena é fundamental para gerar naturalidade e pode ser usado de forma dramática. A ação pode ser parada em determinado momento, demonstrando a curiosidade do personagem ou sua surpresa com o rumo que uma conversa toma. A ação também pode ser simbólica, como em “O Quarto de Jack”, onde o garotinho Jack, após ter passado toda sua existência em cativeiro com sua mãe, acorda em um quarto de hospital, um universo desconhecido até então por ele:
Para um garotinho que até esse momento cresceu acreditando que o seu quarto subterrâneo era toda a extensão do mundo, reparar nas dobras de uma parede ou sentir a textura de um lençol diferente é um desbravamento profundo.
O contrário também vale, fazendo o personagem ter uma ação completamente contraditória a suas palavras e postura. Vide Hans Landa (Bastardos Inglórios) tomando um copo de leite enquanto fala de sua busca por judeus ou Don Corleone acariciando um gato enquanto articula seu imperio criminoso em O Poderoso Chefão. Aqui também vale pensar na movimentação e descrever como os personagens se posicionam espacialmente em relação um ao outro. Em uma briga, alguém pode se levantar e se afastar para delimitar seu território ou alguém só se sentar depois de ter sua atenção atraída pela outra parte. Aaron Sorkin, por exemplo, tem como hábito criar cenas com ações de terceiros externos a conversa, criando uma distração em um dos interlocutores e criando ruídos na comunicação entre eles por conta da ação externa.
Subtexto
Se o texto é a palavra visível no papel, subtexto é o implícito, o que se pode ler nas entrelinhas, o que comunica mesmo sem ser verbalizado. O subtexto é com frequência associado aos diálogos, mas também pode ser utilizado para se pensar a cena como um todo. Handmaid's Tale usa isso magnificamente em diversos momentos. Em determinado momento do episódio 2, June (Offred) se aproxima da mesa onde estão as esposas e elas perguntam sobre como anda o trabalho de parto. Elas estão a frente de uma mesa cheia de doces e luxos inexistentes para as Aias. Elas observam o olhar de June para uma pilha de macarrons e perguntam se ela quer um doce. Ela diz que sim, entre a vergonha, o medo e a vontade. Serena pega um doce e estende a mão na direção de June, que pega doce com cuidado. As outras esposas vibram e comemoram quão bem comportada a Aia é. As escolhas na construção da cena são meticulosamente escritas para parecer ser a interação de um humano e um cachorro, um animal domesticado. Essa escolha metafórica revela a forma que a personagem é tratada e como é vista pelas esposas. A cena simples e impactante, termina com June não conseguindo engulir o doce e guspindo o na pia. Ela não é um cachorro.
Assim, o subtexto adiciona camadas ao seu roteiro, revela muito sobre seus personagens e como eles veem o mundo e faz com que o público ativamente entenda significados que vão além da superfície. Isso pode ser conseguido através de alusão, uma alegoria, um pano de fundo, uma metáfora, uma omissão, etc. Para alcançar o subtexto, o roteirista tem que dominar fortemente o universo e personagens que está escrevendo, de maneira que possa trazer componentes suficientes para permitir espaço para o subtexto.
Hemingway tem uma frase famosa que ficou conhecida como Teoria do Iceberg:
“Se um escritor de prosa sabe o suficiente sobre o que ele está escrevendo, ele pode omitir coisas que ele conhece e o leitor, se o escritor está escrevendo de forma verdadeira, terá um forte sentimento dessas coisas como se o escritor as tivesse declarado. A dignidade do movimento de um iceberg é devido a apenas um oitavo do que está acima da água. Um escritor que omite as coisas porque não as conhece, só está criando buracos vazios em sua escrita.”
- Hemingway em Death in the Afternoon
Quando seu roteiro está bem construído você pode se dar ao luxo de retirar informações e deixar que o leitor preencha as lacunas. Escrever deixando mais a ser compreendido além do que está visível pode ser uma ferramenta poderosa.
Como tornar essa cena mais visual?
Já sabe o que vai acontecer na sua cena? Feche os olhos e imagine a cena, do começo ao fim e então, escreva a cena visualmente. Nós recebemos a maior parte de informações pelos nossos olhos. Escreva de forma que faça o leitor imaginar a cena da mesma forma de você. O imaginário visual é uma peça fundamental para atingir o leitor de forma econômica, mas emocional. Crie um storyboard mental, em que cada cena possa ser representada por uma imagem, uma polaroid da cena, que resuma imageticamente seu conflito.
Essa cena se comunica com o gênero do seu roteiro?
A escrita da cena deve ajudar a compreender o clima e tom do seu roteiro. Faça escolhas do uso de palavras e construções que favoreçam o diálogo com os gêneros do roteiro. Uma cena de um roteiro de comédia pode ser escrita de forma mais divertida, com jogos de palavras, que simule a diversão e leveza (ou absurdo) do momento. Roteiros dramáticos costumam contar com cenas contemplativas, um respiro no roteiro, com ritmo mais lento e que dá tempo ao personagem de acessar e julgar seus próprios sentimentos. Já roteiros de suspense podem ser escritos com uma cadência diferente, alternando entre frases curtas e outras longas, que inspirem uma respiração mais pesada, ajudando a criar a tensão necessária. Brinque com a pontuação. Pause. Dilua o tempo em cenas mais melodramáticas e aumente o ritmo em cenas mais próximas ao clímax. Traga elementos do gênero que possam enriquecer a descrição. Ler roteiros de seus filmes favoritos do gênero é sempre uma boa pedida para aprender como diversos roteiristas trabalham com a cadência, a pontuação e a ação- e como elas podem ser utilizadas de forma a aumentar a experiência de leitura em uma imersão no universo. Experimente.
Essa cena é essencial? Se sim, ela está no lugar correto ( ou melhor, ela está no lugar em que melhor funciona dramaticamente) ?
Toda cena deve avançar a história, o desenvolvimento do personagem ou desdobrar o tema. Se conseguir fazer os três em uma mesma cena, ótimo. Mas muitas vezes, na escrita de um primeiro tratamento escrevemos cenas que não são fundamentais a história e não articulam nenhum dos três papéis. Se pergunte, então, porque essa cena é necessária a sua história? Ela é essencial? Se ela existe apenas para fornecer uma informação, essa informação poderia ser dada com o mesmo peso dramático em uma outra cena? A cena é redundante, mostrando algo que já foi trabalhado em cenas anteriores? Se a ideia é trabalhar com a repetição, isso pode ser interessante, se não, procure fazer com que a cena aprofunde e explore um novo aspecto da questão ou simplesmente elimine-a. Outro estudo importante a se fazer é se a cena está posicionada corretamente dentro da estrutura geral. Cenas interessantes podem perdem impacto quando posicionadas em pontos da trama que não lhe dão o devido brilho. Em dramaturgia a ordem dos fatores altera o produto e principalmente a relação emocional do público com a história e os personagens.