top of page
Buscar
Jaqueline M. Souza

Estudo de Caso: o argumento de O Iluminado


Uma das dúvidas que sempre recebemos aqui é sobre argumentos. Nós já temos um texto falando sobre a escrita de argumentos, mas sempre tivemos vontade de nos aprofundar em um dos exemplos utilizados naquele texto, o argumento de O Iluminado. Achar argumentos de filmes produzidos é quase impossível e ter disponível um argumento tão rico é uma dessas oportunidades que não se pode deixar passar. O problema para muitos é a barreira do idioma e por isso resolvemos que uma tradução do argumento seria pertinente e estimada.

O argumento de O Iluminado é primoroso em sua escrita, sendo sua leitura um ótimo exercício para entender melhor como desenvolver argumentos engajadores, que tragam em sua escrita o estilo e clima pretendido pelo filme. O roteiro de O Iluminado é uma co-autoria entre Stanley Kubrick e Diane Johnson, mas o argumento disponível é ainda das fases iniciais de adaptação de Kubrick. O argumento foi traduzido diretamente de um original disponibilizado pela site Cinephilia & Beyond em mais um trabalho impecável e incessante deles de recuperar a memória da produção cinematográfica.

"Diane é uma romancista americana que publicou uma série de romances extremamente bons que receberam atenção séria e importante. Eu estava interessado em vários de seus livros e ao conversar com eles sobre os livros fiquei surpreso ao saber que ela estava dando um curso na Universidade da Califórnia em Berkeley sobre romance gótico. Quando O Iluminado surgiu, ela parecia ser a colaboradora ideal, o que, de fato, ela provou ser. Eu já estava trabalhando no argumento em cima do livro, antes de ela começar, mas eu não tinha realmente começado o roteiro. Com "O Iluminado", o problema era extrair o enredo essencial e reinventar as seções da história que eram fracas. Os personagens precisavam ser desenvolvidos um pouco diferente do que estavam no romance. É na fase da poda que a destruição de grandes romances geralmente ocorre porque muito do que é bom sobre eles tem a ver com a delicadeza da escrita, a percepção do autor e muitas vezes a densidade da história. Mas O Iluminado era um assunto diferente. Suas virtudes estavam quase inteiramente no enredo, e não se mostrou muito problemático adaptá-lo ao formato do roteiro. Diane e eu conversamos muito sobre o livro e depois fizemos um resumo das cenas que achamos que deveriam ser incluídas no filme. Essa lista de cenas foi embaralhada até que pensamos que estava certo, e então começamos a escrever. Fizemos vários tratamentos do roteiro, que foi posteriormente revisado em diferentes fases antes e durante as filmagens." - Kubrick sobre O Iluminado: uma entrevista com Michel Ciment

Páginas do livro com anotações feitas por Kubrick durante o processo de adaptação.

O arquivo original tem 81 páginas, pois conta com uma quebra de página após cada divisão de cena. Em entrevista a Kamera, Diane Johnson afirmou que esse estilo de escrita era típico de Stanley Kubrick e que ele o utilizava para poder rearranjar a ordem das cenas com mais facilidade. Nós retiramos essa quebra de página para facilitar a leitura e por estar mais próximo do padrão utilizado atualmente. Com isso nossa tradução tem um número menor de páginas, apesar de ter o exato mesmo conteúdo. No argumento de Kubrick também existe uma divisão em dez partes, sendo as noves primeiras bem desenvolvidas e a última (começando na sequência 51) com trechos bem menos detalhados ( o trecho "cujos detalhes devem ser trabalhados e que terminará com a morte de Jack." é exemplar em mostrar que qualquer roteirista no começo do processo de desenvolvimento pode ainda não saber exatamente como chegar em um resultado desejado para sua trama). Essa divisão em dez grandes partes também foi retirada para facilidade de leitura, mas pode ser facilmente acompanhada vendo-se a numeração do original.

E como nós sempre defendemos a leitura como parte do processo de estudo dos roteiristas, nada melhor do que finalmente ler o argumento de O Iluminado. Algumas coisas interessantes a se observar durante a leitura e estudo do argumento:

UM ARGUMENTO BEM ESTRUTURADO AJUDA A CORTAR AS GORDURAS

Observe que com a história bem alicerçada, muitos elementos podem ser retirados, deixando a história mais aberta e minimalista, mas sem perder a essência. No argumento de O Iluminado, isso é muito nítido na presença do livros de recortes. O livro acaba fazendo parte da exposição sobre o passado trágico do hotel, mas ao mesmo tempo, pode ser retirado facilmente ( como o foi no filme) sem que se perca informação fundamental para o acompanhamento da história. No filme, nós sabemos do passado do hotel pelo Sr. Ullman, pela conversa de Danny com Hallorann e pela conversa com Grady já no meio do filme. Em vez de apostar toda a exposição sobre o passado de violência nos quartos do Overlook em um único elemento, a exposição foi diluída ao longo da história como um quebra-cabeça que o público resolve. Mas para ser cortado, em primeiro lugar, é preciso que essa informação esteja lá.

BEAT IT

Um dos erros mais comuns em argumentos é não incluir todos os beats necessários. Beat é um termo inglês, para o que chamamos na literatura de narrema, ou seja, a unidade mínima da estrutura narrativa. O termo foi popularizada por Robert Mckee em seu livro Story:

"Dentro da cena, o menor elemento da estrutura é o Beat. [...] Um Beat é uma mudança de comportamento que ocorre por ação e reação. Beat a Beat, esse comportamento em transformação molda o ponto de virada da cena".

Assim, toda situação, ação ou diálogo fundamental para a compreensão de sua história deve estar no argumento. É aí que nasce a construção da trama. Plants ou pistas importantes de recompensas futuras também devem ser inseridos. Ao mesmo tempo, evite criar todos os seus beats em diálogos, observe o equilíbrio entre beats em diálogos e ações, por exemplo.

UTILIZAR A SEU FAVOR O QUE HÁ DE LITERÁRIO NO ARGUMENTO

O argumento é um texto em prosa, onde podemos brincar mais com a literatura do que no roteiro propriamente dito. Kubrick brinca com essas possibilidades diversas vezes. Às vezes faz uso do discurso direto, as vezes do indireto e até o discurso indireto livre de acordo com o efeito que quer despertar durante a leitura. Kubrick também usa a entrada de parágrafos para criar fluência, ritmo e até sustos ( veja o trecho abaixo como exemplo), o que confere ao argumento uma leitura agradável, engajadora e com o clima pretendido pelo filme já no ato da leitura.

Ela pega e lê. MUITO TRABALHO E POUCA DIVERSÃO FAZ DE JACK UM CARA BOBÃO foi digitado repetidamente, cobrindo a página inteira. Ela olha para a página por alguns segundos, e então começa a se mover pela sala, curvando-se para olhar outras páginas. Eles são todos cobertos com a mesma frase, digitados de novo e de novo MUITO TRABALHO E POUCA DIVERSÃO FAZ DE JACK UM CARA BOBÃO.

"O que você achou?" Jack sorri. Wendy gira e vê que ele entrou em silêncio na sala.

DEFINIR BEM SEUS PERSONAGENS AJUDA A CONSTRUIR SUA HISTÓRIA

Bons personagens e uma boa trama são indissociáveis. Isso faz com que certas histórias só sejam possíveis com certos personagens. Por isso, definir bem seus personagens, suas características, suas habilidades, seus medos, vai influenciar fortemente o desenrolar de sua história. Um bom exemplo disso em O Iluminado é o personagem de Danny. Em um trecho da entrevista Kubrick sobre O Iluminado: uma entrevista com Michel Ciment, Kubrick vai além, diz que o simples domínio de Danny de seus poderes psíquicos inviabilizaria completamente essa história.

Ciment: Você também decidiu mostrar poucas visões e torná-las muito curtas.

Kubrick: Se Danny tivesse "PES - percepção extra sensorial" perfeita, não haveria história. Ele anteciparia tudo, avisaria a todos e resolveria todos os problemas. Portanto, sua percepção do paranormal deve ser imperfeita e fragmentada. Isso também acontece para ser consistente com a maioria dos relatos de experiências telepáticas. O mesmo se aplica a Hallorann. Uma das ironias da história é que você tem pessoas que podem ver o passado e o futuro e têm contato telepático, mas o telefone e o rádio de ondas curtas não funcionam, e as estradas montanhosas cobertas de neve são intransitáveis. A falha de comunicação é um tema que atravessa vários dos meus filmes. - Kubrick sobre O Iluminado: uma entrevista com Michel Ciment

ADAPTAR PODE SER MAIS DO QUE SÓ ADAPTAR A TRAMA

Para quem conhece o livro de Stephen King fica óbvio que Kubrick e Johnson não adaptaram só a trama, mas os personagens, o estilo e até os temas da obra, ou seja, eles usaram a mesma história para discutir questões distintas. (Isso explica um pouco a birra de King com a adaptação de O iluminado). Diane Johnson falou um pouco sobre o seu processo de adaptação em uma entrevista para Mark Steensland:

"O procedimento que Kubrick me aconselhou - e que eu sigo desde então - é acertar a ordem das cenas. Decida as 120 cenas mais essenciais e depois trabalhe com a estrutura até acertar, tendo em mente os temas, a necessidade de caracterização e todas as coisas que você deve ter em mente. Francis Coppola tem uma boa maneira de fazê-lo, onde ele passa pelo livro e marca com três canetas de cores diferentes para tema, personagem e enredo. Então ele os corta e os coloca juntos em uma espécie de esqueleto." - Diane Johnson em entrevista à Kamera

.

ARGUMENTO É PROCESSO

As ferramentas de trabalho como o argumento e a escaleta não são para aprisionar o roteirista, são parte do processo de escrita e desenvolvimento. O argumento do Iluminado é representativo nisso, muita coisa mudou do argumento para o filme, desde elementos da história, até a função dramática de determinados personagens. Hallorann, por exemplo, é uma ameaça no argumento, um grande mal, que irá inclusive se sobressair a Jack e ao qual Wendy tem que enfrentar no final da história. Hallorann tem um função dramática completamente diferente no filme, lá ele é um aliado, uma esperança de resgate para Wendy e Danny. O argumento é justamente parte do processo de descobrir sua história e seus personagens. Escreva, rescreva e explore.

Sem mais delongas, o argumento de O Iluminado (clique na imagem para abrir o pdf):

Boa leitura!

0 comentário
tertulia-6_edited.jpg
bottom of page