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Tertúlia Narrativa

Curtas, roteiros e roteiristas: entrevista com indicados ao Prêmio do Cinema Brasileiro- parte II


Bem-vindos à segunda parte da nossa série de entrevistas com alguns realizadores indicados com seus curtas ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.

A primeira parte pode ser acessada aqui.

Hoje contaremos com a presença de Douglas Soares, Calí dos Anjos e Andrea Mendonça!

Enquanto Ocupação Hotel Cambridge é indiscutivelmente um documentário, Inocentes e Tailor, mesmo indicados nas categorias de Ficção e Animação, respectivamente, acabam cada um a seu modo trazendo a linguagem documental como ponto forte de suas narrativas.

Hoje, nós conversamos com esses realizadores sobre a concepção, a escrita desses filmes e suas referências. Os filmes Inocentes e Ocupação Hotel Cambridge também contam com os projetos disponibilizados.

Mais uma vez, muito obrigada a todos os entrevistados! Essa série não seria possível sem todos aqueles que aceitaram compartilhar um pouco de seus processos e experiências conosco (e com vocês).

O Porta Curtas está com todos os selecionados disponibilizados para streaming e votação. Cada entrevista conta com o link para assistir ao curta e o link para download do roteiro.

Então, assistam os curtas, leiam os projetos e aproveitem!!

Boa sessão e boa leitura.

Assista ao filme aqui

Gênero: Animação Diretor: Calí dos Anjos Roteiro: Calí dos Anjos, Debora Guimarães Duração: 10 min Ano: 2017 Local de Produção: RJ Sinopse: TAILOR é um cartunista transgênero que compartilha em sua página na internet experiências de outras pessoas trans e seus desafios dentro da sociedade.

Calí dos Anjos cursou Comunicação Social na UFRJ e Filmmaking na New York Film Academy. Atualmente é montador e diretor.

TN: Que ideia deu origem ao que se desdobrou no filme? Qual foi seu ponto de partida na escrita de Tailor?

Calí dos Anjos: Quando eu me entendi enquanto trans eu não conhecia outras pessoas trans brasileiras. Tailor foi um dos meus primeiros contatos e eu cheguei nele por meio das suas ilustrações. A partir daí, surgiu a idéia de seguir os quadrinhos dele de forma audiovisual.

TN: Qual o maior desafio em escrever um curta-metragem?

Calí dos Anjos: Não sei se foi um desafio, mas Tailor é um curta metragem documental e animado, então ele não teve um processo de roteiro convencional. Nós entrevistamos os personagens, redigimos as histórias, Debora criou uma estrutura, pensamos nas imagens em animação para cada personagem e daí fomos filmar.

TN: Tailor é um documentário em animação ou animação documental, algo ainda muito raro na cinematografia brasileira. Como foi o processo de desenvolvimento para encontrar esse ponto de convergência entre o olhar documental e a linguagem animada?

Calí dos Anjos: Apesar de ser documentário, nós fizemos um roteiro de ficção depois que entrevistamos as personagens antes do set. A animação é rotoscopia, assim, precisávamos que os personagens realizassem movimentos para depois anima-los. Por isso, era necessário que os prevíssemos antes da filmagem. No set, filmamos esses movimentos e entrevistamos outra vez os personagens.

Como Tailor já desenha por cima de fotos ou frames, tornar seu trabalho audiovisual foi bem intuitivo.

TN: O que você aprendeu escrevendo ou fazendo Tailor e que pode ser uma boa dica para os que querem entrar no mundo do curta-metragem?

Calí dos Anjos: Eu acho essa pergunta muito difícil, porque é extremamente difícil entrar no mundo do audiovisual no Brasil, é um meio branco, cis, hetero e muito elitizado, mas eu diria para a pessoa procurar oficinas, faculdades e outras atividades que tenham outras pessoas do meio para poder criar um grupo, afinal normalmente não se faz um filme sozinho.

TN: Nossa, pergunta padrão nas entrevistas, qual sua/seu roteirista favorita/o? Por que?

Calí dos Anjos: Olha, tem muitos que eu gosto, não sei qual eu prefiro, mas acho que eu gostaria de citar Eli Levén e Ester Martin Bergsmark. São os roteiristas de Something Must Break, primeiro longa metragem dirigido por uma pessoa trans que eu vi e fiquei extremamente emocionado. Eli e Ester também são pessoas trans e eu acho importante me ver em outras pessoas dentro do audiovisual.

TN: Qualquer outra coisa que queira comentar?

Calí dos Anjos: Contratem pessoas trans, chamem pessoas trans para as equipes, remunerem pessoas trans. Nós queremos contar nossas próprias histórias e também poder ter acesso ao mercado de trabalho. Enquanto as equipes forem compostas pelas mesmas pessoas, o mesmo ponto de vista não mudará.​

INOCENTES

Assista ao filme aqui

Gênero: Ficção Roteiro: Douglas Soares Diretor: Douglas Soares Duração: 18 min Ano: 2017 Local de Produção: RJ Sinopse: "Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram. Mas a areia é quente, e há um óleo suave que eles passam nas costas, e esquecem." O percurso voyerístico na obra homoerótica de Alair Gomes.

Formado em Direção Cinematográfica pela Escola Darcy Ribeiro, Douglas Soares é graduando em História da Arte pela UERJ. Fez assistência para diretores como Nelson Pereira dos Santos e Allan Ribeiro, e é diretor e roteirista de diversos filmes.

TN: Que ideia deu origem ao que se desdobrou no filme? Foram as próprias fotos do Alair ou a história de vida dele? Qual foi seu ponto de partida na criação de Inocentes?

Douglas Soares: Em 2010, eu tinha assistido um curta-metragem chamado Sal Grosso, dos realizadores André Amparo e Ana Cristina Murta. Lembro de ter ficado impactado com a possibilidade de transnarrar um material de arquivo, como é realizado neste curta: A filmagem de um churrasco na laje, ganha nova compreensão ao receber uma legendagem com discursos de filósofos gregos.

Sabendo da minha vontade de realizar algo nesta linha, um amigo me apresentou o catálogo de uma exposição do Alair Gomes, ocorrida em Porto Alegre no ano de 2008. Foi a primeira vez que tive contato com as fotografias do artista. Logo percebi que elas também continham essa transnarração que eu buscava: dois homens desconhecidos na praia, malhando, poderiam se transformar em dois amantes apenas pelo enquadramento deste fotógrafo, ou através da seleção das imagens que o ajudariam a contar uma história que ia de encontro com seus desejos pessoais. Alair Gomes era um voyeur nato, precursor de uma obra homoerótica brasileira, e eu me identificava muito com esse desejo, esse tesão, que parte do olhar.

Posso dizer que o roteiro de Inocentes partiu das imagens. Em seguida, passei a pesquisar sua biografia, os textos que escreveu enquanto crítico de arte, seus diários íntimos, e fui elaborando um roteiro ensaístico que abarcasse uma trajetória fotográfica, mas que tratasse também do personagem voyeur para além da figura do Alair. O Voyeur no mundo.

TN: Qual a maior dificuldade em escrever um curta-metragem?

Douglas Soares: Para mim, a maior dificuldade em escrever um curta é chegar à conclusão de que a história que pensei, que me deu vontade de executar, se trata mesmo de um curta-metragem. Aprendi a não ver o curta como um cartão de visitas, ou uma escada para me tornar roteirista ou diretor de longas-metragens.

Para mim, o curta é um formato legítimo, proprietário de uma linguagem específica. Algumas histórias só são contadas em curtas, outras apenas em médias ou longas. Entender onde ela se encaixa é o maior desafio.

Inocentes tem 18 minutos e foi finalizado em 2017, um ano depois de eu ter estreado o meu primeiro longa-metragem, Xale. Esse ir e vir, na duração dos filmes, é algo que me atrai. Conheço realizadores que nunca fizeram um curta, por exemplo. Mas acredito que nunca tenham encontrado a história cabível. Acho que escrever curtas passa por isso: a sua necessidade, e a necessidade da história.

TN: Inocentes pode-se ser considerado um híbrido, pois acaba trazendo elementos tanto ficcionais quanto documentais em sua construção. Além disso, por dialogar e referenciar diretamente o trabalho de Alair Gomes, as questões estéticas e visuais são essenciais para sua história. Me parece que tudo isso já está muito presente no seu roteiro, desde a formatação até a inclusão das fotos. Mas como foi o seu processo de escrita e desenvolvimento do roteiro? Que desafios foram necessários enfrentar criativamente?

Douglas Soares: Eu gosto de escrever com deadline. Não sei o real motivo, mas o tempo correndo me dá motivação. Inocentes foi escrito assim, para um edital da prefeitura onde não fui selecionado. Desde o primeiro tratamento, as imagens já faziam parte do roteiro. Por se tratar de uma reencenação, eu só via sentido se o leitor, e minha equipe, pudessem ver a ação a ser recriada.

Saber quais fotografias seriam escolhidas, foi a parte que demandou mais tempo. Nos tratamentos posteriores eu não queria mais basear o roteiro em um único material de pesquisa (o catálogo de 2008). Então, um amigo me conseguiu fotografias de um livro mais completo, lançado pela Fundação Cartier, na França. Depois o projeto passou pela oficina de roteiro do Curta Cinema, onde ganhou o Prêmio de Melhor Projeto Nacional. E, assim, os tratamentos foram ficando mais elaborados e somando novos olhares.

Uma coisa que foi surgindo no desenvolvimento, e passou a me chamar muita atenção, era o padrão de beleza da época. Eu passei a ter necessidade de falar sobre isso também: como o belo se modifica e cria novos paradigmas e tendências. Mas eu não buscava criar teorias, nem um discurso verbalizado. Desde sempre, o rigor mais presente no projeto era a imagem, e eu me mantive no objetivo de privilegiar isso.

Assim, para manter essa dicotomia da beleza masculina - o ideal que Alair buscava em sua obra - eu decidi que a imagem do filme deveria ser atemporal. Tinha que resgatar estes corpos magros e definidos da década de 1970 e 80, mas sem esconder as escolhas dos anos 2000 e 2010, a "biotecnologia" presente. A identificação da diferença ficaria com o espectador e o referencial que tem. Acho que é por isso que o filme tem recepções tão distintas, de acordo com o país ou situação onde é exibido.

Porém, acima de tudo isso, eu precisava recriar a atmosfera do Alair, seu olhar tão urgente. É no contexto de vida do Alair Gomes, na sua energia, que essas fotografias têm mais significados. Hoje, essas imagens podem estar apenas no campo artístico, mas a obra do Alair sempre foi uma ode à transgressão dos tempos em que o artista vivia.

TN: O que você aprendeu escrevendo ou fazendo Inocentes e que pode ser uma boa dica para os que querem entrar no mundo do curta-metragem?

Douglas Soares: Escrevendo Inocentes eu aprendi que a formatação clássica de um roteiro é algo importante. Mas, não devemos - JAMAIS - ficar presos a isso. O que nos norteia deve ser o risco responsável, para que tentemos novas construções e formas, sempre a privilegiar o melhor entendimento do filme. Não tem errado, se o seu filme pede isso ou aquilo. O Desafio é ficar sempre atento aos sinais.

TN: Nossa pergunta padrão nas entrevistas, qual sua/seu roteirista favorita/o? Por que?

Douglas Soares: Hoje, meus roteiristas preferidos são dois porque, de certa forma, eles se complementam como exemplos do que busco: gosto muito do rigor dramatúrgico e da precisão de cada cena criada pela Anna Muylaert, e fico impressionado com as rupturas e os muitos filmes que o Kleber Mendonça Filho pode me apresentar dentro de uma mesma obra. São dois artistas inspiradores.

OCUPAÇÃO HOTEL CAMBRIDGE

Assista ao filme aqui

Gênero: Documentário Diretora: Andrea Mendonça Roteiro: Andrea Mendonça Duração: 24 min Ano: 2015 Local de Produção: SP Sinopse: O curta metragem retrata o funcionamento do movimento de moradia sem teto do Centro da cidade de São Paulo, Frente de Luta Por Moradia (FLM) por meio do cotidiano dos moradores da Ocupação Hotel Cambridge. Responsabilidade, trabalho duro e organização são a base da luta por moradia, possibilitando que famílias construam um futuro fora das ruas.

Cineasta com formação técnica em direção cinematográfica Filmworks pela Academia Internacional de Cinema. Graduada em Comunicação Social com habilitação em RTV pela Universidade Anhembi Morumbi e técnica em Edição de Vídeo pelo SENAC-SP. No audiovisual trabalha como diretora, continuísta e montadora. Atualmente é diretora e editora do longa metragem documentário Dentre Nordeste e Sudeste, projeto da Micromovimentos Dança&Cinema e Arica Filmes.

TN: Que ideia deu origem ao que se desdobrou no filme? Qual foi seu ponto de partida para a criação de Ocupação Hotel Cambridge? Você queria falar inicialmente sobre ocupações ou já sobre essa ocupação no Hotel Cambridge em especial?

Andrea Mendonça : A princípio eu e a equipe do filme realizávamos uma pesquisa em diversas ocupações pertencentes ao FLM (Frente de Luta por Moradia) na cidade de São Paulo, buscando uma “personagem” que seria protagonista de um filme curta-metragem de ficção. Essa ficção foi realizada no ano de 2014, quando conhecemos a Ocupação Hotel Cambridge e realizamos pesquisa no local, acompanhando o cotidiano de seus moradores, durante aproximadamente um ano, quase que diariamente. Nesse período conhecemos uma carroceira de 62 anos, Dona Eliana Barros Torres, que tornou-se a protagonista do curta-metragem ½ kg, reencenando acontecimentos da sua vida, juntamente com outros moradores da Ocupação Hotel Cambridge, como a coordenadora Raquel Nogueira. O curta-metragem ½ kg foi também filmado dentro da Ocupação Hotel Cambridge. Durante a pesquisa para o curta-metragem ½ kg percebíamos a necessidade de dar espaço e voz aos moradores da Ocupação Hotel Cambridge, que sempre apareciam na mídia (tv, jornal) com uma imagem digamos que deturpada. O processo de pesquisa foi registrada em vídeo e áudio, mas a ideia do documentário surgiu apenas no ano seguinte.

TN: Qual o maior desafio em escrever um curta-metragem documental?

Andrea Mendonça: O maior desafio é definir uma “estrutura” para ele, definir o que podemos chamar de um guia de filmagem, já que é impossível escrever um roteiro fechado, pois no documentário lidamos com imprevistos, com as situações do cotidiano, com a vida de pessoas que não são atores. E ter esse guia é importante para não se perder na hora da edição, para entender qual é o foco do filme, o que pretendemos mostrar. Mas acredito que esse desafio também é o que torna realizar um documentário muito mais interessante do que realizar uma ficção, isso na minha opinião como diretora.

TN: Você pode contar um pouco sobre o processo de escrita do filme? Como documentário, o processo é mais aberto? Você passou por várias etapas de escrita ao longo do desenvolvimento, da captação e da pós?

Andrea Mendonça : O processo de escrita do filme na realidade se deu a partir da escrita de um projeto para entender o que seria o documentário, um projeto com apresentação, justificativa, e com uma estrutura guia de filmagem. Não foi escrito exatamente um roteiro, mas partimos do roteiro do filme anterior, o ½ kg, e de diversas pesquisas realizadas na Ocupação Hotel Cambridge, a maioria entrevistas. A princípio o foco eram 8 mulheres que foram entrevistadas durante um ano de pesquisa na ocupação. Essas 8 mulheres eram como guias para filmagem, seus depoimentos seriam cobertos por imagens delas mesmas dentro da ocupação e outras imagens de cobertura do espaço. O espaço do hotel era visto como um personagem também.

No período de edição as entrevistas realizadas com as mulheres, assim como depoimentos de diversos moradores, foram transcritos (digitados) e imprimidos em papéis e como uma colcha de retalhos, foram recortados, dividiram-se em temas e subtemas a serem tratados e assim foram montados em um painel enorme. Dessa forma o documentário começou a ser montado pelo áudio, esse áudio era o esqueleto, a estrutura do filme, pode se dizer que era o roteiro final.

TN: O que você aprendeu fazendo o Ocupação Hotel Cambridge e que pode ser uma boa dica para os que querem entrar no mundo do curta-metragem?

Andrea Mendonça : O maior aprendizado foi aprender a lidar com as pessoas, respeitar o espaço delas, tentar interferir o mínimo possível no cotidiano da ocupação, acredito que isso é muito importante na realização de um documentário, para ser mais verdadeiro, é claro que em um filme sempre tem o “olhar” , o recorte do diretor, mas respeitando e não distorcendo o que essas pessoas tinham tanta vontade de falar, de mostrar para os espectadores. Então a dica para realizar um filme documentário seria observe primeiro, bastante, seus entrevistados, o espaço, trabalhe com uma equipe reduzida, cuidado ao se aproximar com uma câmera, com o equipamento de filmagem, seja discreto. E aproveite os imprevistos que surgirão, pois eles podem enriquecer o seu filme.

TN: Nossa, pergunta padrão nas entrevistas, qual sua/seu roteirista favorita/o? Por que?

Andrea Mendonça : Durante minha formação os roteiros que eu mais li foram de um diretor iraniano chamado Mohsen Makhmalbaf, no site da Makhmalbaf Film House, não sei se ainda estão disponíveis. Um dos mais marcantes foi do filme O Silêncio, acredito que pela forma que ele mistura ficção com realidade, com reencenar acontecimentos da vida de pessoas reais, que é uma característica de seus filmes e dos filmes da sua filha Samira Makhmalbaf. Como escrever situações simples, situações que vemos no cotidiano, como dar importância para fatos considerados banais, a beleza na simplicidade, como uma folha caindo de uma árvore, o que encontramos muito no cinema de Abbas Kiarostami também. O cinema iraniano sempre foi minha primeira e mais marcante referência.

Fiquem de olho que em breve vem a parte final da série por aqui!!

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