Bem-vindos à terceira parte da nossa série de entrevistas com alguns realizadores indicados a votação com seus curtas ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.
Para quem perdeu, sugerimos ler também a primeira parte e a segunda parte da série.
A etapa de votação já acabou, com os finalistas já tendo sido anunciados, mas para encerrar essa série, hoje contaremos com a presença de mais dois realizadores, Bruno Ribeiro e Leandro Godinho! Pele Suja Minha Carne e Piscina são curtas de ficção premiados e além das entrevistas, o post conta com o roteiro de ambos.
É importante observar, não só em referência aos curtas desse post, mas de todos os disponibilizados nessa série, que muitos dos roteiros contém diferenças significativas com os filmes finalizados. Cenas a mais, a menos, diálogos diferentes, mudanças de intenções ou motivações dos personagens, etc. Esse é um processo comum no audiovisual, não só no curta. O roteiro é um processo orgânico, que pode ganhar novas compreensões e significados durante o fazer do filme. Também pode ser muito elucidativo buscar observar que mudanças acabaram acontecendo entre o escrito e o fílmico!
Agradecemos todos os contatos que recebemos de leitores sobre essa série. Já sabíamos da demanda de mais conteúdo sobre roteiros de curtas e foi lindo ver que os materiais já estavam ajudando muitos a pensar e repensar roteiros de curtas. O curta-metragem é cheio de possibilidades e muitas vezes essa mesma vastidão pode ser imobilizante para quem está começando. Por isso, encontrar quem possa dividir suas experiências é sempre enriquecedor e foi essa a busca dessa série de entrevistas.
Mais uma vez, muito obrigada a todos que aceitaram o convite para dividir suas histórias e processos conosco!
Boa leitura a todos!
PELE SUJA MINHA CARNE
Gênero: Ficção
Diretor: Bruno Ribeiro Roteiro: Bruno Ribeiro Duração: 13 min Ano: 2016 Local de Produção: RJ Sinopse: João toma banho após mais uma pelada com seus amigos brancos.
Bruno Ribeiro é graduando do curso de Cinema e Audiovisual da UFF. Roteirizou, dirigiu e montou os curtas Pele Suja Minha Carne (2016) e BR3 (2018) durante a faculdade. Atualmente se dedica ao desenvolvimento de seu primeiro longa-metragem.
Tertúlia: Que ideia deu origem ao que se desdobrou no filme? Qual foi seu ponto de partida na criação de Pele Suja Minha Carne?
Bruno Ribeiro: Entendo o Pele como o culminar de um longo processo de reflexão a respeito do cinema e de mim mesmo. Apesar de ser meu primeiro filme, realizado nos primeiros períodos da faculdade, eu estudava cinema desde 2010 (entrei na faculdade em 2014), quando descobri que a biblioteca da minha escola (IFF, de Campos dos Goytacazes) tinha livros preciosos sobre a 7ª arte, desde livros mais teóricos de Eisenstein e Bazin, por exemplo, até manuais de roteiro mais popularizados. Li tudo que pude e assisti a tudo o que pude durante esses anos, sem me negar a qualquer cinematografia, por mais densa e estranha que pudesse parecer aos meus olhos viciados. Esse acúmulo de conhecimento me ajudou no processo de escrita do Pele, quando percebo que, apesar da inexperiência, me vejo munido de uma série de formulações que acabo colocando em prática no filme. Gosto de frisar esse ponto do estudo sempre que posso, porque vejo uma afirmação recorrente de que cinema se aprende apenas na prática. Enquanto linguagem, é necessário que se tenha um tempo de imersão para a reflexão dos códigos e de si mesmo dentro disso. Falando mais especificamente da ideia que dá origem ao roteiro, eu estava passando por um período de fortes inquietações ao me perceber constantemente rodeado por brancos, e ao começar a destrinchar a forma sutil como o racismo agia nesses espaços de maioria branca. Entrar na universidade foi incrível e ao mesmo tempo doloroso, já que dificilmente encontrava ali pares negros e negras com quem eu pudesse ter trocas mais profundas e pudesse me espelhar de alguma forma. Essa sensação de não-pertencimento me guiou na escrita do roteiro.
Tertúlia: Qual a maior dificuldade em escrever um curta-metragem?
Bruno Ribeiro: Acredito que a concisão. Eu vinha de uma tradição de espectador de longas-metragens. Havia assistido a poucos curtas até então, algo que só veio a mudar com a minha participação em festivais de curtas. Tive que me adaptar ao formato e desenvolver a capacidade de síntese.
Tertúlia: Nos conte um pouco sobre o seu processo de escrita e como ele aconteceu no Pele Suja Minha Carne? Como você foi dando forma as ideias inicias para contar a história de João?
Bruno Ribeiro: O primeiro tratamento veio em um vômito. Estava em um intervalo no meu trabalho na época, muito pensativo, e aproveitei pra escrever algo. Escrevi a primeira versão em alguns minutos e algumas horas depois a levei para uma reunião com colegas da faculdade. Lemos o roteiro juntos, todos fizeram pontuações e decidimos levar o projeto adiante. Meu processo consistia basicamente em consultar pessoas nas quais eu confiava e, após as reuniões, me refugiar em casa para reescrever, até finalmente chegar numa versão final que me satisfez.
Tertúlia: O que você aprendeu escrevendo ou fazendo Pele Suja Minha Carne e que pode ser uma boa dica para os que querem entrar no mundo do curta-metragem?
Bruno Ribeiro: Uma lição valiosa que tive com o Pele foi a de respeitar o tempo de maturação das etapas do projeto. Principalmente se você for dirigir o que escreveu, é importante que você consiga entrar em total sintonia com o restante da equipe e com a sua visão da coisa antes de ir para o set. Permitir que outras pessoas confrontem as suas ideias te dá a chance de repensá-las e amadurecê-las. A ansiedade para filmar e ver o filme pronto pode se tornar uma armadilha, tirando as raras exceções onde temos projetos que pedem essa urgência.
Primeira página do roteiro de Pele Suja Minha Carne
Tertúlia: Nossa pergunta padrão nas entrevistas, qual sua/seu roteirista favorita/o? Por que?
Bruno Ribeiro: Eu li alguns roteiros de longa quando comecei a estudar cinema, mas sinto que tive mais impacto da literatura e dos filmes que assisti. Acredito que um estudo interdisciplinar pode agregar mais do que um estudo focado apenas em roteiro.
Tertúlia: Qualquer outra coisa que queira comentar? (Pode falar livremente, sobre algum aspecto que não tenha sido encaixado nas perguntas anteriores).
Bruno Ribeiro: Cultivar um hábito consistente de leitura e de escrita foi a melhor alternativa que conheci para quem deseja se tornar roteirista. Se você domina isso, o resto acaba vindo de forma orgânica.
PISCINA
Gênero: Ficção Diretor: Leandro Goddinho Roteiro: Leandro Goddinho Duração: 30 min Ano: 2016 Local de Produção: SP Sinopse: Claudia decide investigar o passado de sua avó recém falecida. Através de uma carta ela conhece Marlene, uma velha alemã que vive no Brasil e mantém suas memórias dentro de uma piscina desativada. Durante a visita, a velha senhora revela detalhes de sua vida que se cruzam com o passado da avó de Claudia. Piscina fala sobre a perseguição aos gays durante o período nazista e as recentes conquistas dos direitos civis da comunidade LGBTT.
Leandro Goddinho é um cineasta brasileiro baseado em Berlim. Diretor, roteirista e editor do Cinema Transgenero, foi selecionado para o BERLINALE TALENTS 2018 e seus curtas-metragens ganharam mais de 80 prêmios em festivais de cinema ao redor do mundo. Em 2017, Goddinho ganhou o edital "Novos Roteiristas" do Ministério da Cultura para escrever seu primeiro longa-metragem.
Tertúlia: Que ideia deu origem ao que se desdobrou no filme? Qual foi seu ponto de partida na criação de Piscina?
Leandro Goddinho: O ponto de partida foi a própria Piscina enquanto locação e personagem central. Em 2009 fiz um curta chamado DARLUZ, onde eu tinha o desejo de que a personagem principal morasse dentro de um buraco no meio da cidade, como uma ratazana. A ideia era montar uma casa inteira dentro deste buraco. Infelizmente, por questões orçamentárias, não consegui realizar esse desejo. Fiquei com isso na minha cabeça e resolvi que faria um filme em que a personagem principal morasse numa piscina vazia. A imagem/metáfora da piscina sem água e cheia de móveis ficou martelando o meu juízo por um tempo e a partir dessa ideia fui me perguntando as razões pelas quais um personagem moraria nessas circunstancias. Em 2012, quando visitei um campo de concentração na Alemanha, tive acesso a um material sobre perseguição nazista aos homossexuais durante e após a Segunda Guerra Mundial, e acabei juntando uma ideia com a outra. Foi dessa forma inusitada que comecei a desenvolver o roteiro.
Tertúlia: Qual o maior desafio em escrever um curta-metragem?
Leandro Goddinho: Acredito que o maior desafio é o espaço curto de tempo para desenvolver uma história e seus personagens. Fazer uma narrativa concisa e bem elaborada em 15-20 páginas de roteiro requer trabalho. Sempre fui fã de contos literários, e acho que esse tipo de leitura é primordial para roteiristas que se aventuram na escrita de um curta.
Tertúlia: Você pode contar um pouco sobre o processo de escrita do filme?
Leandro Goddinho: Como o Piscina é um filme que se passa na década de 1940 e nos anos 2000, eu tive que fazer pesquisa de época sobre o nazismo e a Segunda Guerra Mundial. Me coloquei como desafio escrever todas as cenas do presente e do passado dentro ou em volta de uma piscina, o que também dificultou o processo de escrita. Em todos os meus roteiros começo estabelecendo limites e desafios a mim mesmo, como por exemplo “apenas uma locação”, ou “apenas dois personagens”, mesmo que no meio do caminho eu sinta a necessidade de quebrar minhas próprias regras. No curta Piscina eu queria um elenco 100% feminino e uma história contada 100% em volta desta piscina, e consegui fechar o roteiro assim. Já na história do longa eu comecei tentando usar as mesmas regras, mas ficou impossível aprofundar a narrativa dessa forma. Um longa tem outros tipos de necessidades rítmicas e dramatúrgicas e essas imposições estavam atrapalhando o desenrolar da história.
Tertúlia: Você ganhou um edital de desenvolvimento para escrever um longa-metragem baseado no curta-metragem Piscina. Como está sendo o processo de expandir esse universo e história? O que muda como processo? E narrativamente?
Leandro Goddinho: Esse é o meu segundo curta que transformo em roteiro de longa. Fiz o mesmo com o Darluz. Para além de escrever e produzir um curta, transformá-lo num longa é um processo dramatúrgico de grande desafio. No início rola um apego com a construção narrativa proposta na versão curta e depois você toma consciência de que o longa será uma obra completamente nova, e que muita coisa usada na versão inicial não funcionaria em um longa metragem. As noções de ritmo mudam. Os personagens precisam de maior profundidade e desenvolvimento. Os diálogos tem mais camadas. No fim você percebe que a única coisa que você precisa se manter conectado é ao tema que você se propôs a discutir.
Tertúlia: O que você aprendeu escrevendo ou fazendo Piscina e que pode ser uma boa dica para os que querem entrar no mundo do curta-metragem?
Leandro Goddinho: Aprendi que o único jeito de você escrever um roteiro é mostrando-o para o maior número de pessoas possível e ouvindo o feedback de todas elas sem nenhum tipo de defesa ou julgamento. O roteiro do curta Piscina teve 24 tratamentos e eu lembro de ter mostrado pra muita gente. Amigos do teatro, do cinema e pessoas de fora do nosso meio. Também paguei alguns profissionais para fazer uma supervisão mais elaborada, mas para mim, a opinião e as críticas de todos contam. Sem o olhar do outro você corre o risco de se perder no próprio universo que criou e acaba não sabendo como a sua história reverbera no público. Recentemente participei de um workshop de Pitching com David Pope em um festival de cinema e uma das coisas que ele mais frisou foi isso: MOSTRE SEU ROTEIRO para outras pessoas e ouça suas impressões sobre a história. É óbvio que o trabalho de filtragem das informações recebidas é pessoal e você não é obrigado a acatar a todas as opiniões que ouve. É preciso ouvir, digerir e assimilar o olhar do outro sobre o seu trabalho, balancear com as outras opiniões e ver o que pode ser mudado ou não a partir disso. O primeiro tratamento do longa Darluz, por exemplo, foi todo jogado fora depois do feedback de algumas pessoas. Comecei tudo do zero e seguindo um outro caminho de narrativa.
Primeira página do roteiro de Piscina.
Tertúlia: Nossa pergunta padrão nas entrevistas, qual sua/seu roteirista favorita/o? Por que?
Leandro Goddinho: Eu gosto de muitos dos roteiros do Yorgos Lanthimos, Almodovar, Miranda July, Peter Greenaway, Roy Andersson, e tantos outros que sabem mesclar gêneros narrativos e que não tem apego às regras cinematográficas e muito menos a realidade. Não tenho paciência pra roteirista que se apega excessivamente a verossimilhança dos fatos. O absurdo, o teatral, o operístico, o mítico/metafórico, o performático e o surrealismo me interessam muito mais.
Tertúlia: Qualquer outra coisa que queira comentar? (Pode falar livremente, sobre algum aspecto que não tenha sido encaixado nas perguntas anteriores).
Leandro Goddinho: Como sou formado em teatro e cinema, sempre gosto de defender o teatro. Pra mim roteirista que fala mal da escrita teatral (ou até mesmo da televisiva) está indo por um péssimo caminho. Meu conselho é que não se metam com essa gente que acha que o cinema é uma arte superior.