Vez ou outra, falamos de Beat Sheet e as pessoas logo assumem que estamos nos referindo ao B2B, ou o Beat Sheet de Blake Snider. A verdade é que temos pouco hábito no Brasil de falar de Beat Sheet como um documento de trabalho do roteirista e acabamos deixando isso escapar, muitos inclusive acabam passando pelo Beat Sheet sem saber que o fazem. Então hoje vamos falar sobre o fatídico e complexo Beat Sheet.
Primeiramente, precisamos entender o que é um beat. Nós já falamos sobre ele em outros posts e artigos, mas agora vamos nos aprofundar na questão.
Reza a lenda, que o termo BEAT vem de um erro de interpretação de um repórter americano ao entrevistar Konstantin Stanislavsky. Ao falar sobre unidade de ação, que são seções da ação de uma peça, Stanislavsky a definiu como pequenos trechos que poderiam ser subdivididos para exploração dramática dos atores. Stanislavsky teria se expressado com as palavras Bit By Bit (pedaço por pedaço), mas o sotaque do autor russo teria confundido o repórter que descreveu a fala como Beat by Beat (Batida por Batida). Verdade ou não, o conceito que utilizamos hoje é realmente muito parecido com o que podemos encontrar na obra de Stanislavsky como unidade (кусок no russo). O autor também utiliza termos (dependendo do livro e da edição/tradução) acontecimentos, episódios ou eventos para descrever essa unidade de ação.
"—Meninos! —disse rindo, enquanto a criada colocava diante dele um peru enorme. —Suponham que isto não é um peru, mas uma peça em cinco atos, O inspetor geral. Podem liquidá-la de uma bocada? Não. É tão impossível reduzir a uma só bocada um peru inteiro, quanto uma peça em cinco atos. Temos, portanto, de trinchá-la, primeiro, em pedaços grandes, assim... —disse, cortando as pernas, asas e as partes macias do assado e pondo-as num prato vazio. “Aí têm as primeiras grandes divisões. Mas é impossível engolir até mesmo estes pedaços. Tenho, portanto, de cortá-los em pedaços menores, assim... —e desmembrou ainda mais o peru. [...] Os pedaços maiores vocês reduzem a médios e a menores ainda e até a pedacinhos minúsculos apenas para, eventualmente, inverter o processo, recompondo o todo. [...] A técnica da divisão é relativamente simples. Vocês se perguntam: ‘Qual é o cerne da peça —a coisa sem a qual ela não pode existir?’ Depois repassem os pontos principais, sem entrar em detalhes."
Para Stanislavsky esses pequenos pedaços que dividem a peça ajudam a nortear o trabalho do ator e tem relação com os objetivos dramáticos e seus conteúdos essenciais. Cada unidade de ação tem então um objetivo e a mudança de objetivo define a necessidade de entendimento de uma nova unidade. Todos esses micro objetivos reunidos convergiriam então em um super objetivo da peça. São esses pontos principais que reduzem a estrutura de forma mais coesa, trazendo em si o DNA da história sendo contada.
Se observarmos atentamente, veremos que conceitualmente, o entendimento da unidade de ação de Stanislavsky e do beat são realmente muito similares, se não, iguais.
Mas em roteiro, o termo beat acabou sendo popularizado por Robert Mckee, em seu livro Story.
"Beat é uma mudança de comportamento em ação/reação. Beat por beat, essas mudanças de comportamento mudam a forma da cena."
Ok. Beats mudam quando um personagem consegue ou não seu objetivo, quando outro personagem assume o domínio da cena, quando algo novo é introduzido. Então, o beat é uma reversão, uma mudança, que ajuda a levar a história adiante. Curiosamente, também exatamente a mesma definição mais recorrente de plot points, comumente traduzidos como Pontos de Virada.
"A palavra “beats” pode ser confusa porque também é usada na literatura de roteiro para descrever elementos de cadência semelhantes a estrutura de cena com uma ação e uma reação, e também uma pausa momentânea no diálogo. Aqui, o termo “beat” é estritamente usado para descrever os pontos da trama (Plot Points), que são os principais eventos, decisões ou descobertas feitas pela Virgem, ou Herói, que movem o protagonista em sua jornada." - Kim Hudson, A Promessa da Virgem.
A grande questão é que Mckee entende que o beat, justamente por ser uma unidade pequena de ação, só é cabível dentro de uma cena. Do outro lado, estamos acostumados a nos referir apenas a Pontos de Viradas quando eles estão localizados na transição de um ato para o outro. Mas e quando uma reversão acontece e não é forte o suficiente para ser um ponto de virada entre dois atos e nem tão pequena a ponto de seu impacto ser apenas na própria cena e não no todo? Curiosamente, nós também chamamos isso de Plot Points ou Beats e é por isso que muitas das confusões ao redor da nomenclatura existem.
Para distanciar do termo beat popularmente utilizado como uma unidade dentro da cena, que chamaremos aqui de scene beat, John Truby se refere a esses beats como Story Beats. Conceitualmente, tem o mesmo entendimento dos beats que o Blake Snider, mas o que o autor de Save the Cat faz é associar cada beat com um objetivo dramático pré-concebido. E como falamos lá em cima, sobre Stanislavsky, é importante que cada beat tenha uma função ou objetivo dramático estabelecido por você, não é necessário equivaler os story beats do seu roteiro com paradigmas já estabelecidos.
“Por exemplo, em uma história de amor, dois personagens que se apaixonam podem ir à praia, depois ao cinema, depois ao parque e depois ao jantar. Estas podem ser quatro ações diferentes, mas são o mesmo Story Beat. Isso é repetição, não desenvolvimento. Para o enredo se desenvolver, você deve fazer seu herói reagir a novas informações sobre o oponente (revelações novamente) e ajustar sua estratégia e curso de ação de acordo com isso.” - The Anatomy of Story , John Truby.
Por isso, o beat sheet é um documento de todos os os pontos principais da trama. Uma forma de entender o encadeamento das ações e situações. Ele ajuda no desenvolvimento, e principalmente, na estrutura da trama. Muitos confundem ou até o mesclam com o processo de escaleta, o que não é de todo errado. Por isso mesmo é comum encontrar menções do documento como outlines ou one page outlines. Nós já falamos brevemente sobre elas aqui, como escaletas de uma página. O importante é entender que o Beat Sheet não é só um método para se chegar a escaleta, mas pode ser um documento por si só, é um rico processo de pensar na estrutura e nada a mais. É esse o potencial que muitos perdem durante o processo. Beat Sheets são uma forma sucinta de articular e mexer com a estrutura, limitando-se ao que é fundamental, sem os excessos.
Veja abaixo, um trecho do Beat Sheet de As Panteras, escrito e disponibilizado por John August.
August mescla trechos com informações sucintas ("Nathalie continua perdendo seus encontros com Matt por causa do trabalho") e alguns trechos com informações mais aprofundadas.
Mas essa é a única possibilidade? Não. A beat sheet também poderia ter sido escrita de forma mais abrangente, não definindo o foco narrativo da cena, nem suas intenções.
Um beat brevemente descrito como "João desaparece", pode ser transformado em ação de dezenas de jeitos. Pela perspectiva de João apagando todos os rastros de sua vida, pela perspectiva de quem sente sua ausência, como uma cena, como uma sequência, ou apenas como uma fala dentro de uma cena que já tenha outras funções dramáticas. Mas se isso consta no beat sheet é porque é um elemento fundamental para a trama como um todo.
A principal diferença é que uma escaleta completa já está com as cenas divididas e com um cabeçalho (não importa que método você use para montar sua escaleta, cartões, gráficos, um beat sheet, o documento final está muito mais próximo de um roteiro desenvolvido, mas sem diálogos).
Não existe só uma forma de fazer Beat Sheets. Você pode fazer Beat Sheets sintéticos ou mais desenvolvidos. O importante é que eles condensem de forma clara todos os pontos fundamentais para a compreensão geral de sua trama. Alguns roteiristas trabalham com parágrafos e outros com números (como John August) ou bullet points, com apenas uma frase definindo a linha de ação. Você também vai ouvir alguns roteiristas no Brasil, chamando o Beat Sheet de Bullet Points, justamente pela formatação em lista com a bolinha precedendo a ação.
OUTRAS FORMAS:
Outro exemplo disponível online, esse com as ações mais esmiuçadas, é um documento escrito por Robert Towne para o roteiro de Chinatown. Anos antes de sequer termos a nomenclatura beat utilizada de forma geral, Robert Towne já utiliza o mesmo conceito, em um documento que chamou de Step Sheet. Veja os três primeiros "Passos" da trama, segundo Towne.
1. "Que tipo de cara você acha que eu sou?" - Nós conhecemos J. J GITTES, detetive particular, em seu escritório com um cliente, CURLY. Curly está muito chateado com as fotografias documentando a infidelidade de sua esposa que Jake produziu. Jake faz um esforço para amenizar a fúria assassina de Curly, e o tranquiliza sugerindo que ele pode levar o tempo que ele precisar para pagar os honorários de Jake. Os assistentes de Jake, WALSH e DUFFY, apresentam-no ao sua próxima cliente, uma SRA. EVELYN MULWRAY. A Sra. Mulwray acredita que seu marido, HOLLIS MULWRAY, o chefe do departamento de Água e Energia, está tendo um caso, e ela quer que Jake investigue. Jake é ambivalente, mas aceita o trabalho.
2. "Los Angeles é uma comunidade do deserto" - Encontramos Jake em uma audiência pública sobre a construção de uma nova represa. Hollis Mulwray sustenta a opinião impopular de que a barragem é insegura e insiste que não a construirá. Ele alude a um desastre anterior construído em uma formação rochosa semelhante. A audiência é subitamente interrompida pela chegada de alguns fazendeiros descontentes que pastoreiam suas ovelhas pelo corredor. Eles alegam que Mulwray é responsável por desviar a água do vale deles.
3. "A misteriosa presença de água" - Jake segue Mulwray para um leito seco do rio. A distância, Jake observa Mulwray conversando com um jovem mexicano em um buraco. Mulwray anota algumas informações no mapa. Jake segue Mulwray de carro até o oceano. Mulwray permanece lá o dia todo, Jake observando. Depois que a noite cai, uma torrente de água corre por um canal de escoamento no oceano. Jake segue-o para outro reservatório. Quando Mulwray sai do carro, Jake coloca um relógio de bolso debaixo do pneu.
Observe, como a estrutura de Towne é muito mais detalhada que a John August. Mesmo assim, aqui ainda não existe uma lógica de divisão de cenas, como existiria em uma escaleta. O terceiro beat/step, por exemplo, é uma sequência inteira, composta de várias cenas com a investigação e espionagem de Jake e a presença recorrente de um elemento que será fundamental a trama, mas que ainda não entendemos plenamente no momento, a água. Aqui, Towne utiliza um título que dá unidade e intenção a cada uma das sequências, o que ajuda ainda mais na construção dramática, algo também sugerido por Stanislavsky. Nesse caso, o primeiro beat é uma apresentação do protagonista, seu trabalho e sua personalidade. Também somos apresentados ao caso que será o que eclodirá a trama. O segundo beat apresenta o universo, definindo a cidade, sua relação com a seca e com a água e as tensões sociais a partir disso. O terceiro beat nos coloca no calcanhar de Mulwray e revela o suficiente para intrigar o protagonista e o público sobre quem é esse homem.
Esse formato se aproxima muito do que a autora Jule Selbo chama de Sequence Sheet.
"A Sequence Sheet é uma lista, cena por cena, de como a história da sua tela se desdobrará. Dê um título a cada sequência para que você saiba o que deseja realizar na seção da sua história. Não é necessário gastar tempo criando uma folha de sequência cheia de “prosa bonita ”. Essa é uma ferramenta que o escritor pode usar para ajudar a focar sua história e garantir que cada cena ajude a cumprir o objetivo da sequência." - Jule Selbo em Screenplay: Building Story Through Character
Ela continua citando dois exemplos feitos a partir de engenharia reversa, analisando o filme Harry Potter e o filme Identidade Bourne. Aqui, Selbo utiliza a Sequence Sheet para já pensar nas funções dramáticas de cada uma das ações e como isso ajuda a construir os universos, dar informações e caracterizar os personagens.
SEQUÊNCIA A: A VIDA DE HARRY É MISERÁVEL. Ele não pode ficar.
Harry Potter lê seus livros de bruxos sob um lençol com um flash. Seu tio mesquinho e mesquinho verifica se ele não está lendo e Harry finge estar dormindo. Esta cena mostra que Harry não está livre para ser quem ele é em casa.
Manhã. A desagradável irmã do tio veio visitá-lo. Ela trata Harry terrivelmente, lançando aspersões em sua mãe e pai. Harry perde a paciência e faz a irmã explodir como um balão e voar para o céu. Essa cena revela o passado e os poderes de Harry e, é claro, faz com que ele tenha um grande problema.
Harry sai da casa de seu tio, sabendo que sua punição será severa. Ele tem certeza de que não pode mais morar lá.
Harry é pego pelo Knight Bus e se dirige para se juntar a seus companheiros especialistas. Este ônibus mágico promove a introdução do mundo especial de Harry.
Esta sequência inicial apresenta o gênero, o personagem principal e a vida normal de Harry em casa, e coloca Harry na estrada para sua próxima aventura.
Selbo esquece de um beat importante nessa descrição da sequência, o recebimento de uma carta por Harry Potter.
O outro exemplo citado por Selbo, com a sequencia de abertura de Identidade Bourne:
Outro exemplo: A IDENTIDADE DE BOURNE (2002).
SEQUÊNCIA A: INTRODUÇÃO DE GÊNERO E PERDA DE MEMÓRIA DE BOURNE
Bourne, quase morto de ferimentos a bala, é resgatado do oceano. Note que é noite e está chovendo. Isso aumenta os sentimentos de perigo e drama.
O capitão do navio encontra um chip com um código implantado sob a pele de Bourne. Tem um número de uma conta bancária na Suíça. Isso ajuda a definir o gênero: thriller político. Ajuda a configurar que Bourne é alguém especial.
Bourne ataca o capitão, mostrando suas habilidades como um agressor treinado.
Fica claro para Bourne que ele tem amnésia. Este é um elemento importante da história, e sua configuração está nos primeiros minutos do filme. A pergunta dramática agora está clara: Bourne vai descobrir quem ele é?
Então, independentemente, de você estar utilizando um paradigma ou não, o beat sheet não é documento exclusivo para a estrutura sugerida por Blake Snider. Ele pode ser desenvolvido pensando em sequências ou mesmo como uma lista de linhas de ações fundamentais a trama. O importante é entender o Beat Sheet como um documento que ajuda da forma mais sucinta possível a definir esses pontos principais de cada enredo. Você pode fazê-lo antes ou depois do argumento, mas com certeza antes da escaleta. Também é um ótimo método para processos de reescrita, pois pode ser uma forma interessante de reduzir a estrutura do roteiro já desenvolvido e pensar em como reorganizá-la em um novo tratamento.
É isso! Boa escrita!